Moradores questionam anos de aluguel pagos a família dona de 'cidade
privada' ... Em Rio Tinto (PB), a 52 km de João Pessoa, praticamente
todos os moradores pagam aluguel. Há anos, essa "herança" passa de pai
para filho, sem perspectiva de mudar. Com isso, a antiga terra de índios
potiguaras ganhou o apelido de "cidade privada".
Os herdeiros do fundador do município dizem ser os donos de pelo menos
90% dos imóveis locais, que tem, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística), 23 mil habitantes.
A titularidade das terras, contudo, está sendo questionada pelo
Ministério Público Federal da Paraíba (MPF-PB), que apura se as casas
foram erguidas em espaços pertencentes à União.
São mais de 5.000 moradores de casas construídas paralelamente à
fundação da Companhia de Tecidos Rio Tinto, onde trabalharam muitas
dessas pessoas ou seus antepassados. A fábrica chegou a empregar mais de
15 mil pessoas durante todo seu funcionamento. A história começa há um
século, em 1917, pelas mãos do sueco Herman Theodor Lundgren, que fundou
tanto o município quanto a empresa.
O povoamento se deu, sobretudo, com alemães e pessoas vindas de áreas
próximas a Rio Tinto.
Os imóveis eram "emprestados" aos trabalhadores, que pagavam uma
determinada quantia pela permanência no local. Os entrevistados pela
reportagem não souberam precisar de quanto eram os pagamentos, mas
disseram terem sido sempre valores baixos. Em meados dos anos 1960, a
companhia doou as moradias a funcionários com mais de dez anos de firma
como indenização trabalhista.
Esse privilégio, entretanto, foi para poucos. E gradativamente a fábrica
diminuiu sua produção, até ser desativada, em 1983.
O início da discórdia.
A disputa imobiliária na região mobiliza os sucessores da família
Lundgren contra moradores antigos que sonham serem donos de suas casas.
Por muitos anos, estes pagaram os aluguéis sem reclamar ou questionar.
Foi a partir de 2010 que as coisas começaram a mudar, segundo conta
Josiberto Primo, integrante da Associação dos Moradores de Rio Tinto.
Ele diz que algumas pessoas passaram a divergir dos pagamentos e foram
ganhando apoiadores.
Então se uniram para procurar a Companhia de Habitação da Paraíba
(Cehap) em busca de uma solução para o impasse. A partir daí, várias
audiências públicas foram organizadas.
Um representante dos Lundgren diz que os atuais locatários "pagam
alugueis de baixo valor" e que a companhia, atualmente só atuante no
setor imobiliário, "tenta viabilizar meios para atender um anseio de
parte da população interessada na aquisição dos imóveis" Em 2015, a
discussão se transformou em inquérito civil no MPF-PB, que defende os
trabalhadores, dizendo que essa situação fere o direito constitucional à
moradia. "O direito à moradia deles é cerceado, fere-se o direito à
moradia, que está posto no artigo 6º da Constituição", diz José Godoy
Bezerra, procurador regional dos direitos do cidadão.
O cadastramento socioeconômico realizado pela Cehap mostrou que mais da
metade das famílias em Rio Tinto vive com um salário mínimo e em lares
chefiados por idosos. Pelo menos 22% deles são cadastrados em programas
sociais do governo federal, como o Bolsa Família. A suspensão dos
pagamentos como forma de protesto já havia sido tentada em anos
anteriores, mas a mobilização não teve à época adesão suficiente.
Segundo o presidente da Associação dos Moradores de Rio Tinto, José
Antônio Pereira, pelo menos metade dos locatários não está pagando o
aluguel, "mas sempre tem um ou outro que continua pagando, e isso a
gente não pode impedir".Começaram a chegar cartas dos órgãos de proteção
ao crédito, em consequência do não pagamento dos aluguéis, e alguns
moradores também enfrentam ações de despejo por conta disso. Mas por
enquanto, diz Pereira, elas foram revertidas por decisão judicial.
"O juiz entendeu que houve abuso", afirma. "Estamos esperançosos de que ao final ganharemos o direito às moradias, já que a companhia construiu casas em terras da União", diz ele. "Gastei o que tinha na reforma de algo que não me pertence" Do terraço de casa, a aposentada Maria das Dores Nascimento, 78, passa horas olhando para a fábrica onde trabalhou por mais de 15 anos. A imagem desperta boas lembranças do tempo em que ela e o finado marido trabalhavam na parte da produção. Mas hoje ela se revolta. Reclama de ter de pagar aluguel aos herdeiros dos antigos patrões e de não ter nenhuma perspectiva de deixar a casa para os próprios filhos e netos. "Dos meus 78 anos de vida, 60 foram pagando aluguel. Nunca atrasei nem um dia sequer. Segundo a aposentada, nos anos mais difíceis, ela e o marido chegaram a deixar de comprar comida para não atrasar o aluguel.
"O juiz entendeu que houve abuso", afirma. "Estamos esperançosos de que ao final ganharemos o direito às moradias, já que a companhia construiu casas em terras da União", diz ele. "Gastei o que tinha na reforma de algo que não me pertence" Do terraço de casa, a aposentada Maria das Dores Nascimento, 78, passa horas olhando para a fábrica onde trabalhou por mais de 15 anos. A imagem desperta boas lembranças do tempo em que ela e o finado marido trabalhavam na parte da produção. Mas hoje ela se revolta. Reclama de ter de pagar aluguel aos herdeiros dos antigos patrões e de não ter nenhuma perspectiva de deixar a casa para os próprios filhos e netos. "Dos meus 78 anos de vida, 60 foram pagando aluguel. Nunca atrasei nem um dia sequer. Segundo a aposentada, nos anos mais difíceis, ela e o marido chegaram a deixar de comprar comida para não atrasar o aluguel.
Assim como outros moradores de Rio Tinto, ela conta que precisou fazer
reforma no imóvel para não ver as paredes ruírem. "Gastei o dinheiro que
não tinha para fazer uma pintura, rebocar uma parede. É difícil saber
que nada disso nos pertence, mesmo tendo ficado pagando há tanto tempo.
Na rua do Sol, o também aposentado Euclides dos Santos, 62, tem carnês
de aluguel que se acumulam por mais de 40 anos. Com problemas cardíacos e
diabetes, ele não pode mais trabalhar. Passa o tempo na porta de casa
observando o movimento de vaivém na rua. A casa de dois quartos,
cozinha, sala e banheiro, onde ele mora com a mulher, Anita Conceição,
58, e a filha, custa por mês R$ 80. Para Josefa de Souza, 62, as
reformas feitas no imóvel sem contrapartida da companhia ainda pesam no
bolso. "Gastei mais de R$ 30 mil em reformas, fiz empréstimo para
melhorar a moradia, mas vivo com insegurança", diz."Será que realmente
essas casas serão nossas ou continuaremos a pagar aluguel eternamente?
Não é essa a herança que quero deixar para meus filhos, embora tenha
sido a que recebi dos meus pais", diz ela, que trabalhou na empresa por
mais de dez anos. MPF: "Nunca tinha visto uma cidade privada.
O destino dos moradores de Rio Tinto pode mudar dependendo do resultado
de um estudo técnico que vai ser feito pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Ao custo de R$ 180 mil, deve ser iniciado nas próximas
semanas e vai levar seis meses para ser concluído, segundo o procurador
José Godoy Bezerra.
O levantamento vai tentar responder se as terras em questão pertencem à
União ou aos Lundgren, como eles alegam. "É uma situação atípica. Eu
nunca tinha visto uma cidade privada. E nunca tinha visto uma cidade tão
mobilizada", afirma.
Segundo o procurador, caso seja provado que as terras são da União, as
áreas devem ser repassadas aos atuais ocupantes em um processo de
regularização fundiária. "Não sabemos ainda o alcance disso, tudo
depende do resultado do estudo", afirma. Sendo realmente terras
pertencentes à União, os moradores ainda poderão pedir na Justiça o
ressarcimento do pagamento feito nos últimos cinco anos. O Ministério
das Cidades também foi acionado para apresentar políticas públicas que
visem resolver a situação dos moradores. "Eu entendo que as pessoas que
hoje pagam o aluguel estão pagando sem saber se os Lundgren são os
verdadeiros donos das terras. É possível que estejam pagando a quem não
devem. O ideal é que o pagamento seja suspenso até que tenhamos uma
definição", diz. Para o procurador, a situação afeta até o
desenvolvimento econômico da cidade, já que "ninguém se sente à vontade
de investir sem segurança".
Outro lado
Procurados pela reportagem por telefone, nenhum dos advogados da família
Lundgren atendeu as ligações. Mas Walter Schumacher, diretor que
administra o escritório da Companhia de Tecidos Rio Tinto, onde os
moradores pagam o aluguel, se apresentou como representante dos
herdeiros dos Lundgren na cidade há sete anos. Segundo ele, "a família
administrava 2.500 imóveis, sendo que 1.200 estão sendo reivindicados
pela Funai (Fundação Nacional do Índio) para uma reserva indígena, mas
até a presente data as terras são fruto de um estudo. Ele também
explicou que os outros 1.300 imóveis no centro da cidade são casas
antigas locadas a ex-operários e não operários que pagam "aluguéis de
baixo valor. O diretor disse que a empresa desativou as atividades
têxteis em 1990 e que atualmente administra o setor imobiliário. "Hoje
existe um movimento por parte da população interessada na aquisição dos
imóveis e a empresa está viabilizando meios para atender esse anseio",
declarou Schumacher.
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